A Palavra

Os anos começam a ser alguns e parece que é normal de vez em quando repescarmos algumas memórias do passado. Lembro cada vez mais o meu pai, que me deixou cedo demais, quase criança. E de como ele era. Da sua forma de ser e estar na vida.Da imagem que tinha de si próprio e da que transparecia para os que com ele privavam.


Pessoa com muitos problemas de saúde, tinha uma enorme força interior, que contrastava com a sua debilidade física. Quando os médicos o proibiram de comer quase tudo, mesmo assim não desistiu da vida e era o primeiro a incentivar os demais, arranjando força e palavras sabe-se lá onde, que fazia com que os que o rodeavam o admirassem, não só os os elementos da familia como amigos, colegas, vizinhos e parentes.


Homem de uma personalidade forte, determinado a levar para a frente os seus propósitos, portador duma coragem e persistência pouco vulgar, cedo se esforçou por transmitir às filhas os valores que comungava e acha imprescindiveis no ser humano. Lembro-me do conceito que ele tinha de "palavra" . Não era apenas uma ideia vaga ou um termo do dicionário. Era mais do que isso e tinha peso maior do que hoje tem provavelmente a maioria dos contratos assinados e reconhecidos em notário.
Teve como tantos outros da sua geração,uma infância dura e difícil pois- dizem ainda os que por cá estão- "os tempos eram outros "... E a expressão parca em palavras deixa no entanto adivinhar as carências e dificuldades, mesmo sem nos contarem a história da sardinha dividida por 3 à refeição...
Conseguiu nos poucos anos que connosco esteve, ser reconhecido pelo prestígio das suas acções, pelo honestidade do seu carácter e por um enorme sentido de justiça. Perante todos os que o rodearam. E mesmo quando no período conturbado do pós 25 Abril determinados senhores saudosistas irritados com o seu espírito democrático, o quiseram derrubar, aguentou com muita dignidade, fez-se respeitar e defendeu o que acreditava.
Apesar de ser criancinha na altura foi com ele que aprendi os valores da democracia, embora confesse tenha sido sempre bastante mais "revolucionária". Vem daí também a minha recusa em defender um qualquer grupo ou partido político. Os tais que hoje dizem sim e amanhã nim. Se devemos ter ideais, claro que sim. No entanto acima de tudo preservar a liberdade de poder contestar o que achamos que não está de acordo com os valores que comungamos.
Por vezes penso no que ele sentiria, se estivesse hoje inserido num qualquer local de trabalho, como tantos que por aí há, onde as facadinhas nas costas são o prato do dia.Onde as relações entre colegas e não só, se restrigem a jogadas de interesse ( ... desinteressantes na sua maioria) onde há espécies que se julgam no direito de, olhando de forma obcecada para o seu umbigo, procurar colher os frutos do sucesso a qualquer preço... Onde à nossa frente dizem sim e mal viramos costas tudo se altera e passa a ser não.
Seres como o meu pai são recordados pelo bom que têm dentro de si, enquanto outros chegam depressa demais ao topo da pirâmide, mas o ruído que fazem para lá chegar e o que produzem ao caír, faz com que a maioria deseje bem rápido, apagar da sua memória tal passagem por cá ...
A minha opinião pode ser "suspeita". Como filha pode ser considerado normal, eu falar assim do meu pai. Mas se o for ainda bem que assim é. Continua a ser um bom sinal. Já ouvi filhos falarem muito mal dos seus pais e conheço até quem não se fale pura e simplesmente. E outros que se limitam a ver nos mesmos a promessa dum aumento de capital a médio ou longo prazo ...
Eu continuo a sentir uma saudade enorme do meu pai que faleceu há 26 anos e deixou um vazio sem fim dentro de mim. E por incrivel que pareça sinto que o tempo em vez de apagar as memórias, as aviva gesto a gesto, palavra a palavra...
Obrigada Pai pelo que me deixaste !

Comments

Fora de mão said…
Nem sei bem que dizer.
Como pai, a minha ambição é a de que um dia os meus filhos me recordem como tu recordas o teu.
Quanto ao texto, são enúmeras as afinidades com os meus próprios pais, desde a sardinha para 3 até a esse conceito não nobre de palavra que me foi transmitido por palavras e exemplos e que eu também tento seguir.Beijo e bom fim de semana.
Anonymous said…
Meu pari também era adepto da PALAVRA!

Perdi-o cedo demais, também.

Mas os valores que me transmitiu resistem, gloriosamente!


Abraços, flores, estrelas..

.
segurademim said…
... outros tempos, outras gentes

também tenho saudades do meu pai, da sua generosidade, rectidão, austeridade

estarão sempre presentes em nós e nos que a seguir a nós virão

beijo :)

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